Programação

A terra, o fogo, a água e os ventos – Por um Museu da Errância com Édouard Glissant

Exposição

de 03 de setembro a 25 de janeiro de 2026
ENTRADA GRATUITA ACESSO À VISITAÇÃO ATÉ 18H CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: LIVRE

Atual

Glissant banner site TI 20250722
A TERRA, O FOGO, A ÁGUA E OS VENTOS — Por um Museu da Errância com Édouard Glissant
Curadoria de Ana Roman e Paulo Miyada

O Ministério da Cultura, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet), e o Instituto Tomie Ohtake apresentam a exposição A terra, o fogo, a água e os ventos – Por um Museu da Errância com Édouard Glissant. Concebida como um museu em movimento e dedicada à obra e ao pensamento do poeta, filósofo e ensaísta martinicano Édouard Glissant (1928–2011), a exposição integra a Temporada França-Brasil 2025 como um de seus principais destaques. 

Com seu título inspirado na antologia poética La Terre, le feu, l’eau et les vents (2010), organizada pelo escritor martinicano, a mostra ensaia o que seria um “Museu da Errância”. Errância é uma vivência da Relação: recusa filiações únicas e propõe o museu como arquipélago – espaço de rupturas, apagamentos e reinvenções sem síntese forçada. Contra genealogias rígidas, propõe-se uma memória em trânsito, feita de alianças provisórias, traduções e tremores – um processo institucional movido pelo encontro entre tempos, territórios e linguagens. Ainda que Glissant tenha deixado fragmentos de sua visão para um museu do século 21, não chegou a concretizá-lo.

A exposição imagina como poderia ser esse Museu da Errância em múltiplas camadas e conexões inesperadas entre obras, documentos e paisagens. As duas ideias-chave da organização da montagem da exposição são a palavra da paisagem e a paisagem da palavra, concebidas a partir da concepção de Glissant de “parole du paysage”. Para o poeta, a paisagem não é apenas cenário externo, mas força ativa que molda memórias, gestos e linguagens. 

Além disso, estão presentes em frases, manuscritos e entrevistas do autor outras ideias como Todo-mundo, crioulização, arquipélago, tremor, opacidade, palavra da paisagem e aqui-lá. Trata-se de um arco de assuntos interligados com profunda relevância no mundo contemporâneo, que mais uma vez se vê permeado por discursos e medidas de intolerância perante o diverso e incapaz de criar canais de escuta dos elementos naturais e das paisagens ameaçados de destruição.

É nesse horizonte que se apresenta, pela primeira vez no Brasil, parte da coleção pessoal reunida por Glissant e atualmente preservada no Mémorial ACTe, em Guadalupe. O conjunto inclui pinturas, esculturas e gravuras de artistas com quem o pensador conviveu e sobre os quais escreveu, como Wifredo Lam, Roberto Matta, Agustín Cárdenas, Antonio Seguí, Enrique Zañartu, José Gamarra, Victor Brauner e Victor Anicet, entre outros. São artistas de crescente reconhecimento internacional, que viveram trajetórias de diáspora e imigração, e produziram em trânsito entre línguas, linguagens, paisagens e histórias múltiplas. 

À coleção de obras somam-se documentos, cadernos, vídeos e fragmentos de textos e entrevistas de Glissant, igualmente inéditos. A mostra apresenta também trechos da extensa entrevista concedida em 2008 a Patrick Chamoiseau, escritor martinicano e parceiro intelectual de Glissant, da qual resultou o monumental Abécédaire

Este extenso e rico acervo é apresentado em diálogo com trabalhos de mais de 30 artistas contemporâneos das Américas, Caribe, África, Europa e Ásia, que convocam o público a experimentar, de forma sensorial, o entrelaçamento entre paisagem, linguagem e memória. 

A exposição é parte da pesquisa de longo prazo do Instituto Tomie Ohtake em torno da produção de memória, a exposição dá sequência a iniciativas recentes como a mostra Ensaios para o Museu das Origens (2023) e o seminário Ensaios para o Museu das Origens – Políticas da memória (2024), que reuniu representantes de museus, arquivos e comunidades em um intenso debate sobre preservação e cidadania.  

ARTISTAS PARTICIPANTES
Agustín Cárdenas
Matanzas, Cuba, 1927 – Havana, Cuba, 2001 Agustín Cárdenas realizou sua primeira exposição individual em 1953, em Havana, onde foi aluno do modernista Juan José Sicre na Academia Nacional de Bellas Artes San Alejandro e integrou o grupo Los Once, formado por jovens artistas dedicados à arte abstrata. Voltado à escultura, Cárdenas definiu os fundamentos de sua obra trabalhando com a madeira, com a qual produzia formas com curvas orgânicas, cujas silhuetas remetem a totens e portais. Posteriormente, ele transportou esse léxico ao mármore e ao bronze. Ao mudar-se para Paris, em 1955, Cárdenas foi recebido por um contexto familiarizado com a obra de Wifredo Lam, o que pode ter contribuído para sua aceitação imediata por André Breton, que elogiou suas formas e sua relação com a ancestralidade afro-caribenha. O artista abraçou essa leitura, aprofundando o olhar para as próprias raízes e enfatizando o hibridismo simbólico de suas obras ao incorporar elementos das culturas do oeste da África. No começo da década de 1970, Cárdenas visitou Édouard Glissant no Institut Martiniquais d’Études (IME), na Martinica, onde realizou esculturas de madeira queimada – uma delas, um retrato do poeta: um totem de excepcional sinuosidade, sugerindo o movimento incessante de suas partes. Em 1979, Cárdenas produziu gravuras para uma edição especial do livro de poemas de Glissant chamado Boises [Bosques], referência cruzada entre a paisagem e os grilhões da escravidão.
Aislan Pankararu
Petrolândia, Brasil, 1990. Vive e trabalha em Salvador, Brasil Nascido no sertão de Pernambuco, Aislan Pankararu viveu em várias cidades antes de ingressar na graduação de Medicina da Universidade de Brasília, quando retomou a pintura como forma de conectar-se com o legado e a lembrança de seu povo, Pankararu. Feitas principalmente de tinta branca sobre papel kraft, essas obras remetiam à prática ancestral da pintura corporal de argila sobre a pele. A repetição e o ritmo de seus padrões, linhas e pontos, entretanto, logo atraíram outras associações, evocando traços da paisagem da caatinga, silhuetas de plantas e sementes, mucosas e tecidos vistos com o auxílio de microscópios, trechos do universo ampliados por lentes de telescópios e outras imagens que se evadem de nomeações. A produção de Aislan possui paralelos com a história de seu povo, em que a transformação e a relação são táticas de resistência. Sua reivindicação não aponta para um hipotético retorno a um estado passado, mas para a exaltação da capacidade de mobilizar a memória no presente. Em sua obra comissionada, Aislan mobiliza seu crescente léxico de signos, que se entrelaçam em uma vasta gama de cores lançadas sobre a fibra do linho cru, sobre a pele nua da pintura.
Amoedas Wani e Patrice Alexandre
Desenvolvida por comunidades maroons – descendentes de africanos escravizados que escaparam e fundaram territórios autônomos na floresta amazônica ao longo do rio Maroni, entre a Guiana Francesa e o Suriname –, a arte também forma um sistema visual que combina escrita, desenho e cosmologia. Composta de linhas sinuosas, espirais, ângulos agudos e simetrias precisas, essa grafia é pintada ou entalhada em portas, bancos, remos ou tecidos. Mais do que uma prática ornamental, ela funciona como código relacional que indica proteção, amizade e respeito ou marca momentos de passagem. Testemunho de trajetórias diaspóricas em luta por liberdade, essa linguagem enlaça múltiplas temporalidades e cria campos de significação compartilhada, comunicando saberes e experiências entre gerações. As xilogravuras assinadas por Amoedas Wani e Patrice Alexandre, adquiridas por Sylvie Séma Glissant diretamente da associação de artistas da Guiana, participam dessa tradição como um signo em movimento permeado por evocações de elementos da natureza. Esses trabalhos atestam uma relação virtuosa e expressiva com a vitalidade de uma linguagem coletiva que implica pertença, continuidade e invenção.
Antonio Seguí
Córdoba, Argentina, 1934 – Buenos Aires, Argentina, 2022 Em sua juventude, Antonio Seguí visitou África e Europa, com períodos de estudo em Madri e Paris, e viajou de carro da Argentina ao México. Sua carreira teve início em Buenos Aires, onde se dedicou brevemente à abstração informal antes de passar em definitivo para uma prática figurativa baseada na crônica crítica e irônica da vida cotidiana. Com pinturas, gravuras, desenhos e esculturas, Seguí criou uma obra de amplo alcance, que emprega traços simplificados para narrar situações com tipos urbanos diversos e metáforas dos absurdos de seu tempo. Pioneiro da nova figuração, com sua combinação do repertório visual das charges e do expressionismo alemão, em 1963 Seguí mudou-se para Paris, onde desenvolveu a maior parte de sua obra. Foi ali que conheceu Édouard Glissant, que o convidou a visitar a Martinica em 1970. Nessa viagem, Seguí produziu uma série de desenhos a giz em torno do naufrágio do Titanic, satirizando o fracasso da ideia de poder encenada pelo navio e por seus passageiros. Impactado pela representação da luxuosa embarcação sendo engolida pelo abismo da paisagem, Glissant manteve esses desenhos sempre expostos em seu quarto.
Arébénor Basséne
Dacar, Senegal, 1974. Vive e trabalha em Dacar, Senegal Nascido em Dacar, Basséne concentrou seus estudos nas civilizações africanas, aproveitando o legado de ensino e pesquisa construído após a independência do país. Informado por esses estudos, aprofundou uma prática que fabula histórias ancestrais e simultaneamente explora uma vasta gama de processos e materiais pictóricos. Combinando desde tinta hena até goma arábica, passando por pigmentos naturais e tinta acrílica, desenvolve obras laboriosas, constantemente empregando o batik – técnica de tingimento indonésia transplantada para o oeste da África no século 19. Enquanto muitas de suas pinturas trazem figuras alegóricas referentes a grandes impérios da África e do Mediterrâneo, outras focam a combinação de elementos cartográficos com evocações de paisagens. A obra Méditez-rat-n’est-rien [título intraduzível] (2023-2024) é composta de 33 pinturas referentes a travessias, navegações, fugas e diásporas que percorreram e percorrem o oceano Atlântico, o Saara e o mar Mediterrâneo. Originalmente exposta na Bienal de Dacar de 2024, essa obra encara a paisagem como lugar de errância em que múltiplas temporalidades, narrativas e culturas podem se cruzar.
Cesare Peverelli
Milão, Itália, 1922 – Paris, França, 2000 Cesare Peverelli frequentou a Accademia di Belle Arti di Brera, foi um dos fundadores da revista Numero – Pittura, em 1946, e abriu, com Roberto Crippa, a Galleria Pittura, onde realizou, em 1949, uma exposição individual acompanhada de um poema de Aimé Césaire. Sua abordagem do legado das vanguardas modernas é usualmente associada ao espacialismo, movimento artístico italiano fundado por Lucio Fontana. Além dessa associação, sua obra é exemplar de tentativas que, sem tomarem o caminho da abstração geométrica, procuraram reabrir o imaginário do espaço como algo que extravasa o escopo da perspectiva como forma de representação. A convivência entre Peverelli e Glissant teve início na Itália, visitada muitas vezes pelo poeta martinicano, que criou, ali, relações com diversos artistas, como Emilio Tadini, Sandro Somaré e Valerio Adami – também presentes em sua coleção pessoal. Na França, onde Peverelli se estabeleceu, em 1957, em Paris, essa convivência teve continuidade no círculo da Galerie du Dragon, onde manteve contato com outros artistas que renovaram a abordagem do espaço pictórico munidos de outros repertórios e paisagens.
Chang Yuchen
Shanxi, China, 1989. Vive e trabalha em Nova York, EUA Dedicada a processos duradouros de pesquisa e reflexão, Chang Yuchen por vezes se considera mais uma linguista do que uma artista. Desde 2019, parte importante de sua produção dedica-se ao projeto Coral Dictionary [Dicionário coral], que engloba performances, desenhos, instalações e publicações referentes ao desenvolvimento de um sistema de escrita a partir de fragmentos de corais mortos, recolhidos durante uma residência em uma ilha na Malásia. A escuta sensível da paisagem por Yuchen convergiu com sua atenção à fluidez da língua malaia – que, sem alfabeto próprio, se apropriou de diversas escritas estrangeiras – e deu início a um exercício de tradução para o inglês e o chinês, tomando a forma dos corais como signo e veículo. Nas minúcias desse processo, apreende-se a memória das línguas em que a artista é fluente (na sintaxe econômica do inglês coloquial e na vinculação entre imagem, som e sentido dos ideogramas chineses, por exemplo). Apreende-se, também, o impacto da memória da paisagem malaia em sua abordagem da linguagem como tessitura viva, aberta, que se transforma na relação com o outro, em deriva constante.
Chico Tabibuia
Aldeia Velha, Brasil, 1936 – Casimiro de Abreu, Brasil, 2007 Com conhecimento íntimo de árvores e florestas, Chico Tabibuia, nascido Francisco Moraes da Silva, começou a esculpir ainda na infância, sem incentivo familiar. Trabalhou como lenhador por décadas e passou a dedicar-se continuamente à arte somente a partir dos anos 1970. Suas esculturas são predominantemente talhadas em peças de madeira inteiriças, sem emendas, e trazem representações originais de seres com evidente carga simbólica permeada por traços da diáspora africana. Neto de um português e de uma mulher negra escravizada, Tabibuia frequentou a umbanda quando era adolescente e posteriormente tornou-se membro da Assembleia de Deus – o que não desvinculou sua prática de um sentido espiritual, visto que ele relatava esculpir suas figuras como forma de captura de entidades que encontrava incorporadas nas árvores ou nas matas. Fora do âmbito do culto, ele se mantinha ancorado em um entendimento encantado da natureza e da vida, que se refletia em uma produção de excepcional grau de invenção de arquétipos e de síntese das formas.
Eduardo Zamora
Novo Laredo, México, 1942 – Paris, França, 2023 Eduardo Zamora estudou na Cidade do México e em Cracóvia antes de se instalar em Paris, em 1973. Apesar de essa formação ter sido fortemente marcada pelo muralismo mexicano e pelo realismo socialista, sua pintura tomou o rumo de uma representação de vivências cotidianas em encenações repletas de figuras oníricas e cenas de absurdo, pontuada por comentários a tipos sociais e reminiscências da cultura mexicana. Com uma paleta de tons opacos e terrosos realçada pelo branco, desenvolveu uma pintura simultaneamente sombria e fantasiosa, frequentemente centrada no teatro da vida privada. Além de frequentar o circuito da Galerie du Dragon, Zamora fez parte do grupo Magie-Image, cuja primeira exposição aconteceu no Espace Latino-Américain, em 1983. Ativo até 1990, o grupo era composto de jovens artistas latino-americanos radicados em Paris, ligados pelo contexto de violência política de seus países de origem e pelo interesse por desenvolver na pintura atitudes que ecoavam a vanguarda surrealista e, mais especificamente, o imaginário do realismo fantástico latino-americano.
Emanoel Araújo
Santo Amaro, Brasil, 1940 – São Paulo, Brasil, 2022 Artista, curador, colecionador e gestor cultural, Emanoel Araújo transformou o panorama institucional da arte e ofereceu vastas contribuições para a compreensão da herança africana no Brasil. Em sua juventude, foi introduzido aos ofícios de ourivesaria, marcenaria e linotipia – habilidades que carregou para sua formação em Salvador, durante a década de 1960, onde rapidamente se destacou por suas pinturas e xilogravuras, primeiramente figurativas e depois abstratas. O desenvolvimento gradual da prática de Araújo o levou da gravação em madeira à escultura e aos relevos de parede, sempre apoiado em uma linguagem compositiva feita de superfícies ritmadas por cortes diagonais. A diáspora africana é diretamente abordada em obras como os relevos intitulados Navio (2011 e 2022) – composições que sintetizam o trauma do transporte de pessoas escravizadas –, mas seu alcance na obra de Araújo vai muito além do escopo temático. A própria abordagem da geometria, da topologia e da matriz construtiva nas suas obras abstratas pode ser percebida como um exemplo seminal de uma abstração negra diaspórica no Brasil, resultante da articulação entre repertórios africanos e o contexto artístico local.
Enrique Zañartu
Paris, França, 1921 – 2000 Enrique Zañartu cresceu em Santiago do Chile, onde começou a pintar em 1938. Em Nova York, onde viveu entre 1944 e 1947, aprimorou sua gravura no célebre Atelier 17, criado por William Hayter em Paris e transferido aos EUA durante a guerra. Após dois anos em Havana, Zañartu acompanhou o retorno de artistas exilados e do próprio Atelier 17 para Paris em 1949. Em contato com latino-americanos expatriados e com círculos associados ao legado surrealista, Zañartu aprofundou seu trabalho em pintura e gravura, dedicado a conformar campos atmosféricos em que se encontram (em conflito, em repouso ou em cópula) fragmentos incompletos de corpos e trechos de paisagens. Zañartu produziu, ainda, gravuras para publicações de poetas e escritores, como Édouard Glissant, Octavio Paz e Julio Cortázar. Com Glissant, Zañartu publicou Les Indes [As Índias], iniciativa em que artista e poeta se debruçaram sobre os estremecimentos entrelaçados da paisagem, do corpo, da linguagem e do pensamento. Zañartu manteve-se também comprometido em apoiar exilados políticos da ditadura chilena e contribuiu com o Espace Latino-Américain a partir de 1982.
Ernest Breleur
Rivière-Salée, Martinica, 1945. Vive e trabalha em Fort-de-France, Martinica Em 1984, um ano após começar a pintar, Breleur fundou, com Victor Anicet e outros amigos, o grupo Fwomajé – nome crioulo da monumental árvore tropical sumaúma. Com esse grupo, que discutia a diversidade da identidade caribenha, Breleur buscou inspiração no que conhecia dos imaginários africanos e em suas memórias de contos antilhanos. Em 1989, contudo, rompeu com o Fwomajé e com seus aspectos culturalistas, dando início a suas séries de pinturas com maior densidade estética. Sem título (série Noire [Negra], 1990) é uma obra com ênfase gráfica: pinceladas em tons claros definem traços agitados sobre uma superfície escura. Um corpo-silhueta sem cabeça, mãos nem pés flutua dobrado sobre si mesmo, enquanto duas casas invertidas se descolam do horizonte. Não há propriamente uma narrativa, mas, antes, uma alusão a um estado de instabilidade: Breleur encontrou sua forma de se referir aos abalos e às tensões de seu tempo sem passar por iconografias regionais ou por comentários diretos à ordem do dia. Inquieto e prolífico, ele deixou de pintar em 1992 e continuou suas experimentações, ora intervindo sobre radiografias, ora produzindo assemblages, instalações e desenhos.
Etienne de France
Paris, França, 1984. Vive e trabalha em Marmeaux, França A prática de Etienne de France investiga a paisagem como território de imaginação, linguagem e emancipação. Em The Telling of the Stones [O dizer das pedras], o artista parte da amizade entre Édouard Glissant e o escritor islandês Thor Vilhjálmsson para compor poeticamente uma ficção especulativa. A videoinstalação nasce da hipótese de um poema-romance que os dois teriam começado – ou sonhado – a escrever juntos; sua narrativa cruza tempos, geografias e cosmologias: entre Guadalupe e a Islândia, entre vestígios de pedras gravadas e paisagens que falam. No primeiro canto, uma mulher do povo Kalinago foge da violência colonial no século 17, guiada por pedras-espíritos rumo a ilhas vulcânicas do norte. No segundo, dois homens atravessam as planícies islandesas do século 19, relembrando a lenda de uma estrangeira que teria deixado inscrições em rochas do deserto central. A pedra, em ambas as narrativas, é voz e figura: máscara, arquivo, guia. As línguas garífuna e islandesa atravessam o vídeo como música e ruína, evocando camadas de tradução, apagamento e sobrevivência. Referências aos romances Sartorius, de Glissant, e La Terre magnétique : Les errances de Rapa Nui, l'île de Pâques [A Terra magnética: as errâncias de Rapa Nui, Ilha de Páscoa], de Sylvie Séma-Glissant e Édouard Glissant, e La mousse grise brûle [A espuma cinza queima], de Vilhjálmsson, mostram como ambos concebiam a paisagem como linguagem viva, que resiste, guia e guarda os vestígios do mundo.
Federica Matta
Neuilly-sur-Seine, França, 1955. Vive e trabalha em Paris, França A prática de Federica Matta entremeia arte, colaboração, educação e fabulação e abrange desde livros paradidáticos até obras públicas. Com sua linguagem visual lúdica e abundante, permeada de signos recolhidos em numerosas mitologias, Federica dedicou diversos desenhos, notas e cadernos para reelaborar ideias poéticas que apreendeu nos escritos de Glissant – com quem conviveu desde a infância. Aos 15 anos, passou um ano estudando no Institut Martiniquais d’Études (IME), criado por Glissant em Fort-de-France, em 1967, sendo testemunha de um momento de grande investimento do poeta em seu país e em seu povo. Uma das mais ambiciosas realizações de Federica é o jardim de esculturas-jogos criado em 1993 na Plaza Brasil, em Santiago do Chile. Os 22 elementos desenhados pela artista investem no imaginário como ferramenta de transformação social, estabelecendo um exuberante espaço participativo para a convivência de adultos e crianças em um bairro central da cidade. Trata-se de um marco na história dos espaços públicos chilenos nos anos que se seguiram a uma longa e brutal ditadura.
Flavio-Shiró
Sapporo, Japão, 1928. Vive entre Paris, França e Rio de Janeiro, Brasil Entre sua infância e sua juventude, Flavio-Shiró viveu em Sapporo, no Japão, em Tomé-Açú, na Amazônia brasileira, e nas capitais São Paulo e Rio de Janeiro. Nesse arco, conheceu desde o zelo pela arte cultivado por seus pais até o respeito à escuridão noturna da floresta tropical. Munido de excepcional vocação para o desenho como parte constituinte da pintura, ele estendeu sua errância ao mudar-se, em 1953, para Paris, onde plantou raízes definitivas, tornando-se um participante ativo de espaços de encontro de artistas latino-americanos. Nesse contexto, foi um dos primeiros brasileiros a visitar o repertório pictórico que se desenvolvia na França sob múltiplas alcunhas: informalismo, arte informal, arte outra, tachismo. Flávio-Shiró incorporou a ênfase na gestualidade, a experimentação com espessas camadas de tinta, o aceno à caligrafia e à garatuja como modelos para a pincelada. Ele refutou, entretanto, o abandono completo do desenho em prol da abstração. Suas obras sustentam o desenho como recurso para evocar temores e tremores do mundo.
Florencia Rodriguez Giles
Buenos Aires, Argentina, 1978. Vive e trabalha em La Plata, Argentina Florencia Rodriguez Giles trabalha com desenho, instalação, vídeo e práticas colaborativas, articulando arte e saúde mental como campos de experimentação estética e política. Ela é integrante do Club de Artes y Ocios (CAOs) – comunidade autônoma fundada em 2020, voltada à criação coletiva entre artistas, pessoas psiquiatrizadas e profissionais da saúde. Sua prática emerge da convivência com experiências de sofrimento psíquico, exclusão institucional e invenção de outros modos de vida, em uma investigação contínua sobre os limites entre realidade, delírio e sonho. Ela desenvolve uma prática “psicoidal”, em que escuta, delírio e imaginação coletiva rompem com a lógica do diagnóstico e reconfiguram os termos da convivência. Seus desenhos a lápis – quase sempre em grande escala – surgem como extensões de narrativas compartilhadas. Misturam erotismo, mutação e fabulação psíquica com uma materialidade porosa, em que o traço minucioso remete a secreções. Em Lxs durmientes [Xs dormentes] (2024), corpos se amontoam em uma massa viva entre a vigília e o colapso, entre abrigo e excesso. Ao fundo, uma paisagem aparece subitamente, sem transição, como se emergisse de um sonho alheio.
Frank Walter
Horsford Hill, Antígua e Barbuda, 1926 – 2009 Frank Walter nasceu em Antígua, ilha caribenha sob o domínio colonial britânico até 1981. Com ascendência multirracial em um contexto em que a miscigenação era tabu, Walter tornou-se o primeiro negro a atuar como gerente nas plantações de cana-de-açúcar da ilha. Viajou para a Europa para completar sua formação, mas, confrontado pelo racismo estrutural, entrou em um período de errâncias marcado pela pobreza e pela institucionalização psiquiátrica em capitais como Londres, Paris e Berlim. Quando retornou para Antígua, em 1961, tentou, sem sucesso, assumir um papel de liderança na renovação de seu território. Ao longo das décadas seguintes, mobilizou por conta própria um ciclo de estudo e produção multifacetado, que abrangia desde a arte até a ciência, passando pela sustentabilidade ecológica e pela história da Europa e do colonialismo. Sua vasta produção em pintura foi realizada sobre materiais descartáveis e em pequenas dimensões, como caixas de negativos das fotografias Polaroid. Com poucas e decididas pinceladas de cores intensas, Walter fez da paisagem seu motivo mais constante, em que convergia percepção ambiental, fabulação mítica, pensamento analítico, expansão sensorial e proteção da subjetividade.
Gabriela Morawetz
Rzeszów, Polônia, 1952 – Paris, França, 2023 Gabriela Morawetz estudou na Academia de Belas Artes de Cracóvia, na Polônia, e viveu em Caracas, na Venezuela, de 1975 a 1983, quando se estabeleceu em Paris. Com seu companheiro, Pancho Quilici, sustentou por toda a sua carreira um constante trânsito entre Venezuela, França e Polônia. Suas pinturas feitas até a década de 1990 recorrem ao embate entre a imagem do corpo feminino – baseado na própria figura – e paisagens naturais que vão de desertos a florestas. Nessas obras, as cores e os elementos compositivos de forte intensidade pictórica extrapolam as convenções naturalistas de representação. Com isso, ela enfatiza estados de tensão e reciprocidade entre pessoa e ambiente, nos quais a subjetividade não é uma propriedade exclusiva da figura humana, enquanto o corpo se apresenta imantado de qualidades paisagísticas. Nas décadas mais recentes, Morawetz expandiu sua prática para explorar também escultura, instalação, gravura e fotografia aplicada a múltiplos suportes. A imagem do corpo feminino manteve-se, porém, no cerne de sua obra, operando como um signo em constante processo de se formar e se dissolver no espaço circundante.
Geneviève Gallego
Saint-Martin, França, 1950. Vive e trabalha em Saint-Martin, França A prática artística de Geneviève Gallego é atracada na topografia montanhosa dos Pirineus, onde vive num vilarejo remoto. Esculpindo desde 1996, trabalha sobretudo com madeiras queimadas, como zimbro, carvalho, buxo, prunus, urze e castanheiro. Sua poética é conectada à expressão corporal, aos gestos da dança e à força viva das palavras, dedicando-se a formas rítmicas que respondem aos veios e nós da madeira enquanto definem curvas movimentadas e volumes que oscilam entre a sugestão de corpos femininos e topografias montanhosas. Gallego conviveu com Édouard e Sylvie Glissant por mais de 30 anos, tendo começado a esculpir na companhia dos dois. Em suas palavras: “Édouard escreveu em algum lugar que no tremor dos galhos ele ouvia as palavras. Posso dizer que eu ouço o tremor das palavras de Édouard e as uso para esculpir a madeira”. Entalhada logo após uma conversa telefônica com Glissant, quando ele concebia o Musée Martiniquais des Arts des Amériques, Géographies du Chaos-monde [Geografias do Caos-mundo] (2010) responde direta e intencionalmente ao caráter fluido do pensamento dele, ao mesmo tempo que dá corpo – com linhas trêmulas e reviravoltas – a uma resposta visceral à dor de seu amigo, que se encontrava enfermo.
Gerardo Chávez
Trujillo, Peru, 1937 – 2025 Estudou na Escuela Nacional de Bellas Artes de Lima e mudou-se para a Europa em 1960, em tempo de se esquivar da crescente presença da abstração geométrica em seu país. Admirador do legado do Renascimento, estabeleceu-se na Itália e, em 1962, mudou-se para Paris por sugestão de Roberto Matta, com quem manteve diálogo, assim como com Wifredo Lam e com artistas latino-americanos de sua geração. Esse contexto fortaleceu sua adesão à pintura figurativa com tons fantásticos, oníricos, absurdos ou surreais – conforme o referencial de quem a observa. Chávez retornou ao Peru em 1968, na iminência da instauração de um regime ditatorial. Sua base, porém, permanceu em Paris durante toda a década de 1970 e até meados da década de 1980. Chávez sustentou uma produção sem largos intervalos, consolidando seu foco em aglomerações de figuras humanoides em torno de atividades variadas (da cópula à brincadeira, do rito à procissão) sobre fundos abismais que tendem ao monocromo. Na obra Sem título (1978), multiplicam-se figuras com lanças em uma composição que, em seu movimento espiralar, sugere uma batalha. As pinceladas, por entre as quais se vê a cor da madeira, dão dinamismo aos braços, às pernas e às armas, que parecem ter acabado de conter um corpo agigantado.
Hamedine Kane
Ksar, Mauritânia, 1983. Vive e trabalha entre Bruxelas, Bélgica; Paris, França; e Dacar, Senegal A prática de Hamedine Kane, artista e cineasta senegalo-mauritano, usa a experiência do exílio e do nomadismo para explorar os legados da independência africana e os vínculos entre literatura, política e resistência. Nesta exposição, Kane apresenta doze gravuras e um vídeo da série Salesman of Revolt [Vendedor de revolta], que se inspira na prática de jovens ambulantes que vendem livros em mercados e ruas de Dacar. As gravuras, produzidas com a artista indiana Tejswini Narayan Sonawane, partem de capas de obras marcantes da literatura afro-diaspórica, como Une colère noire [Entre o mundo e eu], de Ta-Nehisi Coates, e C’est le soleil qui m’a brûlée [Foi o sol que me queimou], de Calixthe Beyala. O vídeo documenta uma performance realizada por Kane nas ruas de Mumbai, onde ele repete o gesto de carregar pilhas de livros sobre a cabeça, deslocando e reinscrevendo essas histórias em outro território. Como obra comissionada, o artista apresenta também tecidos costurados que articulam palavras, símbolos e traços inspirados por autores como Édouard Glissant. Esses fragmentos formam uma cartografia poética de saberes em trânsito, entre escrita, exílio e imaginação.
Irving Petlin
Chicago, EUA, 1934 – Martha’s Vineyard, EUA, 2018 A obra de Irving Petlin explora a paisagem como espaço de memória, deslocamento e reverberação histórica. Nascido em Chicago, filho de imigrantes judeus poloneses, estudou no Art Institute e na Yale School of Art antes de se mudar para Paris, no fim dos anos 1950. Lá, envolveu-se com artistas e intelectuais engajados contra a Guerra da Argélia e iniciou sua experimentação com o pastel – técnica que se tornou central em sua prática devido à sua intensa e porosa qualidade cromática, que permite combinar precisão e organicidade. Entre Paris e Nova York, Petlin construiu uma obra marcada pela história do século 20: guerras, exílios, protestos e fantasmas atravessam seus trabalhos, nos quais figura e atmosfera se confundem no que Glissant chamou de “lonjura interior”. Suas paisagens raramente são descritas literalmente – aparecem como massas mescladas de cores saturadas, de onde corpos (humanos ou não) emergem e se diluem na atmosfera. A paisagem, para ele, era uma superfície de inscrição – não do que se vê ou se explica, mas de assombrações e fantasias.
Jean-Claude Garoute (Tiga)
Jéremie, Haiti, 1935 – Miami, EUA, 2006 Jean-Claude Garoute, conhecido como Tiga, foi uma das figuras mais influentes da arte haitiana no século 20. Artista visual, ceramista, poeta e pedagogo, fundou o centro cultural Poto Mitan em Porto Príncipe, em 1968, assim como a escola Saint Soleil e o centro Kaytiga, nos anos 1970. Comprometido com uma arte enraizada nos saberes do vodu e nas práticas ancestrais haitianas, recusando a separação entre arte erudita e expressão popular, Tiga concebeu e difundiu a rotation artistique [rotação artística], método pedagógico e filosófico que desloca a criação artística da esfera do talento individual para um processo de escuta interior, experimentação e circulação entre diversas mídias – como pintura, escultura, dança, escrita e música. A rotação implica justamente essa passagem contínua entre suportes e linguagens, como forma de liberar o gesto de imposições técnicas. As obras de Tiga frequentemente evocam formas híbridas e em transformação – figuras humanas entrelaçadas com forças naturais e espirituais. Suas linhas ondulam como cantos ou orações visuais; seu traço espiralado e gestual dá corpo a uma mitologia viva, em que paisagem, espírito e matéria parecem se entrelaçar.
José Gamarra
Tacuarembó, Uruguai, 1934. Vive e trabalha em Paris, França Antes de se estabelecer na França, onde se aproximou de Édouard Glissant a partir dos círculos de convívio da Galerie du Dragon, José Gamarra morou no Rio de Janeiro e em São Paulo no princípio da década de 1960, quando viveu uma etapa importante de sua formação. A partir de 1963, já em Paris, Gamarra experimentou convergir a linguagem ágil da nova figuração com representações imaginárias de selvas, combinando elementos da paisagem brasileira com acenos críticos a traços compartilhados pelos países da América Latina que iam do legado colonial à crescente violência de Estado na região. Aproximando realidade, simbolismo, mito e história, as paisagens de Gamarra tornaram-se mais e mais detalhadas, constantemente emulando o repertório da história de pintura de gênero europeia. L’Inaccessible [O inacessível] (1986/1987) é uma representação minuciosa de um úmido e escuro ambiente tropical, pontuado por figuras alegóricas que se referem tanto à ancestral presença ameríndia quanto ao imperialismo norte-americano. O trabalho em papel Sem título (1986) organiza-se em torno de um felino à espreita em uma das raras cenas noturnas do artista.
Julien Creuzet
Le Blanc-Mesnil, França, 1986. Vive e trabalha em Montreuil, França A obra de Julien Creuzet combina, sem hierarquizar, poesia, imagem em movimento, instalação, escultura, som e coreografia. Crescido na Martinica, Creuzet constantemente evoca a experiência com a paisagem e a cultura das Antilhas, além do pensamento de autores como Aimé Césaire e Édouard Glissant. Primeiro residente do Édouard Glissant Art Fund, sediado na casa do poeta martinicano, Creuzet desenvolveu sua forma de “pensamento do arquipélago”, conectando geografias, tempos e afetos da história afrodiaspórica. Nesta exposição, o artista apresenta uma escultura de aço Corten relacionada à história dos rios Tietê e Pinheiros, em São Paulo. O trabalho integra um conjunto maior desenvolvido no âmbito da mostra Águas subterrâneas: narrativas de confluência, realizada em parceria com o Frac Poitou-Charentes no contexto da Temporada França-Brasil 2025. Ao aproximar visualmente essas paisagens distantes, a obra investiga como memória, violência e tempo moldam e silenciam as matérias que compõem o mundo.
Kelly Sinnapah Mary
Saint-François, Guadalupe, 1981. Vive e trabalha em Le Gosier, Guadalupe Kelly Sinnapah Mary desenvolve uma obra que percorre camadas históricas e ecológicas do Caribe. Descendente de trabalhadores indianos levados à ilha pelo governo francês, entre 1854 e 1889, para substituir a mão de obra escravizada, a artista articula heranças africanas, asiáticas, ameríndias e europeias. Em esculturas, tapeçarias e, principalmente, pinturas, ela fabula personagens e cenas compostos de ecos de lembranças familiares, referências literárias e histórias de diásporas, sempre tendo como ambiência e personagem a paisagem caribenha, suas florestas e seus mangues. A escolha de cores e o movimento das pinceladas de Sinnapah Mary fazem da densidade e da temperatura características compartilhadas pelos ambientes e pelos protagonistas de suas obras. É nessa afinação entre pessoas e territórios que ela apresenta referências lúdicas e domésticas imbricadas com questões do colonialismo, da mestiçagem forçada e do deslocamento. Na série The Book of Violette [O livro de Violette] (2025), Mary cria uma personagem inspirada em sua avó, que atravessa as telas em constante metamorfose – menina, anciã, animal, divindade.
M. Emile
Importante expressão artística caribenha, a pintura popular haitiana formou-se nos anos 1940 em torno do Centre d’Art de Porto Príncipe, de onde partiram inúmeros artistas dedicados a representar facetas da vida de sua comunidade. Em suas telas, festas, costumes, paisagens e rituais compartilham o plano, em que natureza, espiritualidade, cotidiano e política estão enlaçados. A pintura atribuída a M. Emile – nome presente em diversas coleções de pintura popular haitiana – condensa esse universo em uma composição complexa. A terra, as árvores e os corpos são tratados com a mesma densidade formal, dissolvendo hierarquias entre figura e fundo. O grupo de pessoas está imerso em um ambiente exuberante, que não é apenas cenário, mas também agente: uma árvore sagrada Mapou parece ter sido arrancada do solo por uma intempérie, desencadeando múltiplas ações concatenadas em um rito associado ao vodu haitiano. Mais do que simples descrição de um costume social, a obra entremeia o visível e o invisível ao representar uma paisagem espiritual, dinâmica e compartilhada.
Manthia Diawara
Bamaco, Mali, 1953. Vive e trabalha entre Nova York, EUA; Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos; e Yene, Senegal Manthia Diawara nasceu no Mali, estudou em Guiné e na França, mudou-se para os Estados Unidos e hoje vive entre Nova York, Abu Dhabi e Yene. Sua jornada lhe proporcionou uma perspectiva complexa e movente do pensamento africano e afrodiaspórico. Crítico e professor, escritor e cineasta, Diawara dedica parte de seu trabalho a registrar e discutir contribuições de pensadores como Wole Soyinka, Angela Davis, David Hammons e, especialmente, Édouard Glissant, com quem estabeleceu uma forte amizade que se desdobra em suas reflexões atuais. A Letter From Yene [Uma carta de Yene] (2022) é uma carta fílmica construída a partir de encontros nessa vila senegalesa, onde Diawara vive parte do ano. À medida que o litoral da região é transformado pelo suposto progresso impulsionado por dinâmicas econômicas globais, as práticas tradicionais de pesca ficam restritas, e homens e mulheres recorrem a táticas de sobrevivência empobrecidas e com risco de agravar o desequilíbrio ecológico local. O filme se aproxima dos trabalhadores, encarando diferenças linguísticas e culturais, para discutir o entrelaçamento de histórias e responsabilidades em um ecossistema vulnerável e partilhado. Diawara não se isenta: como narrador e também morador, valoriza os desvios, os silêncios e os gestos mínimos, inserindo-se nas contradições da paisagem que habita.
Mélinda Fourn
Paris, França, 1995. Vive e trabalha entre Dacar, Senegal; e Kumasi, Gana Mélinda Fourn é uma artista franco-beninense cuja prática se desenvolve a partir do contato direto com saberes técnicos da África Ocidental, como a ourivesaria, o trançado, a cerâmica e o trabalho em metal. Cresceu na França, estudou na École des Beaux-Arts de Paris e mudou-se para Gana após um intercâmbio na Universidade de Ciência e Tecnologia de Kumasi, estabelecendo-se entre Dacar (Senegal) e Acra (Gana). Sua pesquisa envolve o aprendizado com mestres-artesãos, em resposta ao apagamento de técnicas tradicionais. Reconfigurando objetos cotidianos em novas escalas e composições, Fourn investiga a dimensão simbólica da técnica. Seus trabalhos propõem uma leitura expandida da paisagem: não como cenário, mas como superfície de inscrição. Sua instalação na exposição reúne múltiplas peças compostas a partir de descartes de oficinas de serralheria em Dacar. Os arranjos simétricos dos fragmentos remetem à composição de ornamentos, enquanto seu caráter planar e seu contraste com a parede os aproxima de signos gráficos de uma escrita indecifrável que tem algo de ideograma, algo de Adinkra. Técnica e palavra se confundem: ambas dependem da transmissão, da memória e do corpo.
Melvin Edwards
Houston, EUA, 1937. Vive e trabalha entre Nova York, EUA; e Dacar, Senegal A obra de Melvin Edwards emerge das lutas civis nos Estados Unidos, refletindo tensões entre arte abstrata, violência histórica e resistência negra. Desde os anos 1960, o artista explora a soldagem de metais – correntes, ferramentas, pregos, ganchos – como linguagem escultórica capaz de condensar conflito e memória. Sua série mais conhecida, Lynch Fragments [Fragmentos de linchamento] (1963 – presente), atravessa décadas e contextos: iniciada em resposta à brutalidade racial nos EUA, expandiu-se para comentar guerras, homenagear figuras históricas e investigar ancestralidades africanas. Os materiais utilizados – como martelos e cinzéis forjados em composições densas – e os títulos das obras evocam o trabalho físico exaustivo e a violência contra o corpo negro. Na convivência com Édouard Glissant, Edwards reconheceu afinidades entre sua abordagem plástica e o pensamento do filósofo martiniquense. A ideia de tremor – central na filosofia de Glissant – aparece nas obras do artista como uma energia contida, uma vibração entre signo e silêncio. Suas obras, ademais, exercem algo que interessava profundamente ao poeta: a capacidade de transformar, pelo grito, pela poesia e pelo discurso, signos usualmente associados exclusivamente ao trauma.
Minia Biabiany
Basse-Terre, Guadalupe, 1988. Vive em Saint-Claude, Guadalupe Minia Biabiany cresceu aos pés do vulcão La Soufrière, em uma família com forte interesse pelo jardim crioulo e pela preservação dos saberes curativos a ele associados. Seu trabalho explora as imbricações entre corpos, linguagem e a terra, questionando a relação com histórias pessoais ou marcos que podem ajudar a redefinir narrativas humanas e mais que humanas dentro de um contexto colonial. As peças pendentes de madeira queimada e tranças de fibra de bananeira, apresentadas na exposição, integraram originalmente a mostra the sky with root-eyed [O céu com olhos de raiz] (2025), em que a artista combinou esses materiais com peças de cerâmica e água para dar corpo a uma constelação inventada de um sapo, delineada a partir de estrelas existentes no céu noturno de Guadalupe – o canto pulsante do sapo marca o início e o fim de cada dia em todo o arquipélago. Os cortes das peças de madeira queimada dos pendentes seguem silhuetas reconhecíveis do vulcão, animais e plantas medicinais do território de Guadalupe, todas conectadas a ritmos cíclicos, frequentemente usados como referências temporais no passado e no presente. A flor de banana, em especial, carrega múltiplas tensões: ela evoca os usos de suas propriedades curativas para o útero e a pesquisa de Biabiany sobre sua linhagem e, ao mesmo tempo, assinala a contaminação causada pelo pesticida clordecona – empregado nas plantações de banana até meados dos anos 1990, com efeitos que persistem no solo, na água e nos corpos.
Nolan Oswald Dennis
Lusaka, Zâmbia, 1988. Vive e trabalha em Johannesburgo, África do Sul Nolan Oswald Dennis desenvolve uma prática que desestabiliza os sistemas que sustentam a ordem colonial do mundo – sua organização do espaço, do tempo, do saber e da matéria. Por meio de instalações, diagramas e vídeos, seu trabalho investiga as formas invisíveis de controle que moldam os limites da imaginação política. Em recurse 4 a late planet [recursão para um planeta tardio] (2024 – presente), Dennis desenvolve um mural-diagrama a partir do rastreamento de asteroides potencialmente perigosos que orbitam a Terra, em paralelo ao mapeamento da história do arremesso de pedras em ações de protesto. Juntos, esses fenômenos cosmopolíticos constroem uma história social das pedras como arquivos de catástrofe, deslocamento e reinvenção. Entre cosmologia, geologia e tecnologias de mapeamento, a obra explora as forças que sustentam o mundo tal como o conhecemos – e aquelas que têm o potencial de desestabilizá-lo. Os diagramas de Dennis funcionam como ferramentas especulativas para pensar formas de vida fora dos modelos dominantes: subterrâneas, cósmicas, desviantes. Nesses diagramas, importa tanto a combinação de informações e ideias amealhadas de contextos diversos quanto sua distribuição no espaço gráfico e seu modo de apresentação. Pesquisa, fabulação, crítica e visualidade se reúnem para criar um contexto para uma reflexão sobre as pedras como alegorias da justiça.
Öyvind Fahlström
São Paulo, Brasil, 1928 – Estocolmo, Suécia, 1976 Filho único de mãe sueca e pai norueguês, nascido em São Paulo, Öyvind Fahlström viajou para a Suécia em 1938 a fim de visitar sua família e acabou impedido de retornar ao Brasil por causa da Segunda Guerra Mundial. Desenvolveu seus estudos em Estocolmo, onde realizou uma defesa pioneira da poesia concreta, o manifesto Hätila ragulpr på fåtskliaben (1953) - título retirado da tradução sueca de Winnie the Pooh, de A.A. Milne, em um episódio em que o personagem Coruja tenta dizer "Feliz Aniversário". O texto foi publicado em fevereiro de 1954 na revista Odysse. Inspirado pela música concreta de Pierre Schaeffer, propôs uma abordagem em que a linguagem fosse tratada como matéria sonora, gráfica e visual, rompendo com a linearidade semântica e expandindo a complexidade da língua. Nesse mesmo período, iniciou Opera, sua primeira obra visual de relevância, enquanto vivia em Roma. Seguiu escrevendo crítica cultural, publicada em jornais diários de Estocolmo, além de produzir poesia concreta e peças teatrais. Nos anos 1960, ao mudar-se para Nova York, Fahlström transpôs esse princípio para o campo visual com as chamadas “obras variáveis”: composições com elementos móveis que podiam ser reconfigurados pelo público. Neste período também aprofundou sua relação com a história em quadrinhos. Sua produção compreende pinturas, desenhos, gravuras, poemas, happenings, instalações e filmes. Ora associado ao dadaísmo, ora à nova figuração ou ao conceitualismo, Fahlström não cabe em categorias. Na década de 1970, produziu alguns de seus trabalhos mais reconhecidos: composições diagramáticas de palavras e signos, sistemas visuais e poéticos em que língua, imagem e paisagem entram em deriva – como forma de pensar o mundo em sua instabilidade.
Pancho Quilici
Caracas, Venezuela, 1954. Vive e trabalha em Paris, França Vivendo em Paris desde o início dos anos 1980, Quilici permaneceu ativo também na Venezuela, onde expôs com frequência na Galería Minotauro, em Caracas, dirigida por Cecília Ayala – que também dirigiu a Galerie du Dragon, em Paris, a partir de 1986. Nesse ir e vir, estabeleceu uma rede de interlocuções ao lado de sua parceira, a artista polonesa Gabriela Morawetz. Desvinculado do cânone cinético-construtivo venezuelano, Quilici desenvolveu sua prática a partir do desenho e de seus interesses por arqueologia, topografia, arquitetura e topologia. Paisagens, construções coloniais, ruínas mesoamericanas e espaços inventados convergem em obras como sua colagem sobre papel Sem título (1985), reproduzida na capa da edição do romance Tout-Monde [Todo-Mundo], de Glissant. Já em Passage au centre 2 [Passagem ao centro 2] (2000), traçados precisos se cruzam sobre uma base criada com emulsões fluidas que se assentam com uma dose de acaso. As imagens de Quilici parecem emergir de uma concepção de tempo e espaço que burla ideias de linearidade cronológica e de separação territorial. Nas palavras de Glissant, elas podem ser percebidas como, ao mesmo tempo, “a memória dilatada do mundo e a precisa transparência de uma primeira manhã”.
Paul Mayer
Forbach, França, 1922 – Amiens, França, 1998 Paul Mayer foi poeta, linguista e artista, nascido na Alsácia – região disputada entre França e Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Convocado ao front alemão, viveu anos de combate e deslocamento forçado, até render-se deliberadamente ao Exército Vermelho em 1945, sendo então levado a um campo de trabalho na Prússia Oriental. No pós-guerra, retomou os estudos, mudou-se para Paris e integrou-se à cena artística da Galerie du Dragon, onde conheceu Édouard Glissant. Começou a pintar entre 1969 e 1970, e entre 1973 e 1974 produziu suas primeiras poesias-pinturas. Nelas, Mayer funde tinta e palavra: poemas recortados são aplicados a superfícies manchadas por gotejamentos e derramamentos de tinta. Em algumas obras, o papel é queimado, fazendo da combustão um gesto poético e político. Esses procedimentos – a colagem, o recorte, o uso da linguagem como matéria visual e a queima do papel – posicionam Mayer como herdeiro de diversas tradições artísticas e linguísticas do início do século 20 e do pós-guerra europeu, como o dadaísmo, o surrealismo, o letrismo e o situacionismo.
Pedro França
Rio de Janeiro, Brasil, 1984. Vive e trabalha em São Paulo, Brasil Nos últimos treze anos, o fio condutor da produção de Pedro França tem sido seu interesse por imagens alegóricas da sociedade contemporânea. As cenas construídas pelo artista trazem um sentido narrativo aberto, que não aponta exclusivamente para um fato ou episódio, mas combinam e deslocam elementos sugestivos, muitos deles implicados em iconografias diversas da história da arte e além dela. Assim, não há uma história única sendo narrada, mas um feixe de reminiscências e associações que o artista oferece ao público para serem relacionadas com seus desejos, experiências, medos e traumas. Resistindo à demanda por eficiência e clareza, França atua do lado da ambivalência e da ambiguidade. Recentemente, tem se dedicado a compor paisagens permeadas por um senso de absurdo, com elementos ambientais, figuras e seres reunidos em situações de desmazelo, uma espécie de deserto de expectativas. A repetição de cenas e figuras entre inúmeros desenhos, pinturas e afrescos as transforma em imagens tão persistentes quanto sonhos e profecias que atualizam temores e desejos inconscientes.
Pol Taburet
Paris, França, 1997. Vive e trabalha em Paris, França Pol Taburet trabalha com pintura e escultura, criando figuras híbridas e espectrais que emergem como aparições. Com raízes familiares em Guadalupe – sua avó é originária da ilha caribenha –, sua obra é atravessada por mitologias pessoais e coletivas, religiosidades afrodiaspóricas, como o quimbois e o vodu, a cultura trap e a tradição pictórica europeia. As criaturas e cenas que elabora – com algo de sonho, delírio e rito – parecem surgir de outro plano: olhos incandescentes, dentes cintilantes, corpos em trânsito entre o visível e o informe. Taburet alterna tinta acrílica e aerografia, tinta à base de resina e bastão de óleo para construir superfícies densas e inquietantes. Suas figuras não são ilustrativas: elas aparecem, se impõem, contaminam o espaço. Nascem de ambientes noturnos – quartos, clubes, palcos –, mas também parecem condensar algo das paisagens de onde surgem: vegetações cerradas, atmosferas carregadas, silêncios atravessados por presenças invisíveis. No trabalho apresentado na exposição, produzido no Brasil, Taburet reflete seu trânsito por múltiplos territórios em torno do Atlântico, ativando seus pontos de convergência e transformação.
Raphaël Barontini
Paris, França, 1984. Vive e trabalha em Paris, França Raphaël Barontini evoca, por meio da pintura, da colagem, da costura, da impressão digital e da serigrafia sobre elementos têxteis narrativas possíveis das diásporas africana e caribenha. Sua prática – que também se estende a performances – entrelaça arquivos coloniais, imaginários populares e técnicas contemporâneas em retratos que desafiam os modos hegemônicos de representação e embaralham simbologias de poder, soberania e vitalidade oriundas de múltiplas origens e temporalidades. Em La clairière du Bois-Caïman [A clareira do Bois-Caïman] (2024), o artista parte da cerimônia realizada em 1791, no território de Bois-Caïman, no norte de Saint-Domingue, onde lideranças espirituais como Dutty Boukman e Cécile Fatiman conduziram um ritual vodu que antecedeu e impulsionou o levante coletivo contra o sistema escravista francês, momento decisivo para a Revolução Haitiana. Na obra de dimensões monumentais, Barontini combina tecidos tingidos e bordados, imagens serigrafadas e suportes heráldicos para criar um território-paisagem de insurreição simbólica. A manipulação do material, a intensidade da cor e o encontro de símbolos convocam a memória e a fabulação como formas de resistência sensível.
Rayana Rayo
Recife, Brasil, 1989. Vive e trabalha em Recife, Brasil A produção de Rayana Rayo é permeada pela vivência do clima e da maré, de mangues, restingas e ilhas da paisagem de Recife, sua cidade natal. Suas pinturas, de pinceladas espessas e cores afinadas em suas relações tonais, evocam atmosferas úmidas e topografias arredondadas, que são habitadas por elementos híbridos – entre ser vegetal, animal e onírico. São cenas que não comunicam narrativas lineares, preferindo fabular relações entre corpos, fragmentos e ambiências afetivas. Da mesma forma, ela não lida com a paisagem por meio da perspectiva ou da descrição, mas, sim, fazendo todos os elementos da composição emergirem da mesma matéria da pintura, tomando partido de suas propriedades sinestésicas (sua capacidade de evocar calor e odor, silêncio e desejo, vento e solidão).
Rebeca Carapiá
Salvador, Brasil, 1988. Vive e trabalha em São Paulo, Brasil A prática artística de Rebeca Carapiá abrange escultura, instalação, gravura, desenho e texto. Seus trabalhos promovem fricções entre linguagem, corpo e território, atravessando debates sobre memória, racismo ambiental, tecnologias ancestrais, dissidência de gênero e economias da precariedade. Ao dobrar, cortar e curvar metais como o cobre e o ferro, constrói uma espécie de caligrafia que se relaciona com as paisagens periféricas de Salvador – zonas de atravessamento, apagamento e resistência, onde sua obra se ancora. As palavras, muitas vezes ponto de partida, são dobradas, riscadas, distorcidas até se tornarem presença escultórica no espaço, conformando uma espécie de escrita-paisagem, ou uma paisagem-escrita. Nesta exposição, Carapiá apresenta trabalhos desenvolvidos durante residência artística em São Paulo, em 2022. Criados em papel, os desenhos reverberam os gestos análogos aos que realiza em metal, mas em escala diferente e confrontando outra sorte de resistência. Entre linhas, manchas e cortes, a artista desenha uma geografia do corpo em trânsito, atravessada pelas camadas da paisagem paulista e pela memória da vivência em Salvador.
Roberto Matta
Santiago, Chile, 1911 – Civitavecchia, Itália, 2002 A trajetória de Roberto Matta é marcada por deslocamentos, uma errância constante que o levou a se declarar “residente do mundo”. Seu estudo de arquitetura em Santiago lhe permitiu trabalhar no escritório de Le Corbusier, em Paris, tendo oportunidade de viajar por muitos países da Europa ainda na década de 1930. Em 1937, testemunhou a criação de Guernica por Picasso e, no mesmo ano, conheceu André Breton, que o incentivou a publicar o artigo “Mathématique sensible, architecture du temps” [Matemática sensível, arquitetura dos tempos] (publicado na revista Minotaure em 1938), marcando o início de seu engajamento com o surrealismo. Matta desenvolveu uma forma única de abordar a espontaneidade, o automatismo e o inconsciente, ampliando o escopo da pintura surrealista ao abordar o espaço pictórico como campo emocional. Descritas por Glissant como “erupções extravagantes”, suas pinturas são mais espaciais do que narrativas, constituindo a projeção visual de paisagens interiores, afetivas e multidimensionais. Matta e Glissant compartilharam uma interlocução próxima e longeva. A participação ativa de ambos na Galerie du Dragon é exemplificada pela publicação de Terres nouvelles [Terras novas] (1956), reunindo um ensaio do poeta e uma gravura do artista. A pintura La montagne pelée ne fume plus, elle fleurit [A Montanha Pelée não fuma mais, ela floresce] (1958), que alude ao grande vulcão martinicano, é um ponto de convergência entre suas visões de mundo, com as possibilidades que ambos abriam para pensar a paisagem pelo viés dos afetos (e vice-versa). A viagem ao Egito, registrada no Journal d’un voyage sur le Nil [Caderno de viagem ao Nilo] (1988), de Glissant, também foi compartilhada com o artista.
Serge Hélénon
Fort-de-France, Martinica, 1934. Vive e trabalha em Nice, França A obra de Serge Hélénon transita entre pintura, relevo e assemblage como exercício de memória e deslocamento. Formado na Martinica e na França, viveu por mais de duas décadas na Costa do Marfim, onde fundou com outros martinicanos a École Négro-Caraïbe (1970), marco das alianças da diáspora negra. Construiu uma linguagem que rompe com o exotismo da representação enquanto desafia a convenção da superfície pictórica plana. Trabalha com materiais residuais – madeiras, tecidos, pigmentos – para criar composições em que cor, relevo e vestígio se entrelaçam. As obras operam como estopas da história: condensam camadas de tempo e fragmentos de mundos em choque. Em suas composições tormentosas, Hélénon dá forma visual à ideia de traço (trace) – vestígio de origens perdidas que abre caminho para a coexistência de tempos e culturas. Sobre elas, Glissant escreveu: “Então as sobras se erguem e se elevam […]. O que cresce ali é o encontro das diferenças, a força que gera […]”. Trata-se da possibilidade de recompor o que o mundo partiu em suas tempestades e seus naufrágios, como no objeto Bwa Mémoire (2000), cujo nome em crioulo poderia ser traduzido como “árvore-memória”.
Sheila Hicks
Nebraska, Estados Unidos, 1934. Vive e trabalha em Paris, França O interesse de Hicks pelo têxtil, quando estudava pintura na Yale School of Art, fez seu professor Josef Albers convidá-la para uma viagem de pesquisa e ensino a Santiago do Chile, em 1957. Ela estendeu essa oportunidade, transformando-a em uma ampla jornada pela América do Sul, da Venezuela à Terra do Fogo, visitando artesãs e estudando técnicas têxteis e cosmogonias ancestrais. Esse foi o início de uma pesquisa poética que continua até hoje, com a artista explorando a linha e a fibra têxteis com atenção às suas propriedades estruturais e em diálogo com o repertório que conheceu nas paisagens e comunidades sul-americanas. Com uma produção que não era acolhida nem pelo campo da arte nem pelo campo do artesanato, depois de viver e trabalhar no México desde 1959, em 1964 Hicks se mudou para Paris, onde se aproximou de artistas chilenos e se casou com Enrique Zañartu, estabelecendo contato com imigrantes que escapavam da ditadura de Pinochet e com o contexto da Galerie du Dragon e do Espace Latino-Américain (onde realizou sua primeira mostra em Paris, em 1968). Em Bâtons de parole [Bastões da palavra] (2024-2025), Hicks combina tradições ao emaranhar fios multicoloridos em objetos que remetem ao direito à fala concedido a quem os empunha.
Sylvie Séma Glissant
Vive e trabalha em Paris, França Artista e psicanalista clínica, Sylvie Séma dirige o Institut du Tout-Monde desde sua fundação por Édouard Glissant, em 2006. O início de sua produção, no fim da década de 1980, foi marcado pelo convívio com artistas como Roberto Matta e Augustin Cárdenas e se desenvolveu em paralelo com sua interlocução profunda com Glissant, em um convívio cujo amplo legado inclui diversos desenhos que combinam os traços e as caligrafias de ambos e a escrita simbiótica do livro La Terre magnétique: Les errances de Rapa Nui, l’Île de Pâques [A Terra magnética: as errâncias de Rapa Nui, Ilha de Páscoa] (2007). Em suas pinturas, seus desenhos e gravuras, Sylvie Séma constantemente elege tintas de tons escuros, espalhadas em gestos expansivos, sem esboços nem linhas de contorno. Dos ágeis movimentos de sua mão, ela faz com que se formem sugestões de paisagens: evocações de traços marcados na paisagem como testemunhos de errâncias, rotas migratórias, diásporas, marés, tremores e outros fluxos, mesmo aqueles invisíveis a olho nu. Dismantling Boats of Disaster [Desmonte de barcos do desastre] (2023), uma de suas gravuras de grande formato, amalgama tempos ao combinar gravura e monotipia para apontar a simultânea destruição e reconstrução de um barco no movimento rítmico de um mar revolto.
Tarik Kiswanson
Halmstad, Suécia, 1986. Vive e trabalha em Paris, França Tarik Kiswanson é artista visual e poeta. Filho de uma família palestina exilada em Jerusalém, passou por Trípoli (Líbia) e Amã (Jordânia) antes de se estabelecer em Halmstad. Sua prática artística – que abrange escultura, vídeo e escrita – examina como histórias de perda, migração e regeneração se entrelaçam em múltiplas dimensões temporais e espaciais, frequentemente por meio de relações invisíveis ou não perceptíveis de imediato. Nesta exposição, Kiswanson apresenta três trabalhos interligados que refletem sobre deslocamento, temporalidade e a transmissão de saberes entre gerações. Em The Wait [A espera] (2025), uma forma escultórica – evocando uma semente, cápsula ou casulo – repousa de maneira precária sobre o encosto de uma cadeira da Móveis Cimo, modelo utilizado em salas de espera de repartições de imigração no Brasil durante os anos 1950. A superfície alva e lisa do objeto, assim como seu equilíbrio delicado, evoca uma temporalidade suspensa, oscilando entre anonimato e inscrição, regeneração e apagamento. No vídeo The Reading Room [A sala de leitura] (2020), um menino que está aprendendo a ler hesita e gagueja ao enunciar fragmentos de textos de Édouard Glissant, Gayatri Chakravorty Spivak e Noam Chomsky – livros retirados das estantes da The Edward W. Said Reading Room, na Columbia University. De forma semelhante, em I Tried as Hard as I Could [Eu tentei o máximo que eu pude] (2019), uma criança tenta, com dificuldade, transcrever um poema em árabe, enfrentando o estranhamento linguístico produzido pela migração de seus avós argelinos para a França. Em ambos os vídeos, a dificuldade de articulação torna-se um lugar em que perda, continuidade, reelaboração e devir se cruzam, revelando as complexidades da construção de sentido em uma condição diaspórica e fragmentada.
Tiago Sant’Ana
Santo Antônio de Jesus, Brasil, 1990. Vive e trabalha em Salvador, Brasil A prática de Tiago Sant’Ana mobiliza múltiplas linguagens – desenho, pintura, vídeo, bordado, escultura, escrita – para articular uma poética da memória afrodiaspórica pautada pela dignidade e pelo cuidado. O artista investiga relações entre corpo, história e travessia, fabulando, a partir do conceito iorubano de itutu, uma ética visual do repouso e da contemplação. No vídeo Apneia (2024), o canto de uma baleia solitária, inspirada na baleia dos 52 hertz – animal real cuja vocalização, inaudível a outras baleias, a torna eternamente isolada –, é o ponto de partida para uma alegoria das vozes negras silenciadas nas travessias do Atlântico. Incorporado em uma espécie de marionete articulado que se move de modo sincopado, o canto ecoa o volume incomensurável de mortes e, também, a persistência poética dos sons diaspóricos que viveram a travessia do Atlântico e se propagam em reverberações sem fim.
Victor Anicet
Marigot, Martinica, 1938. Vive e trabalha em Marigot, Martinica Filho de pai pescador e mãe trabalhadora de engenho, Victor Anicet teve contato com cerâmicas do povo Arawak ainda criança, ao acompanhar escavações arqueológicas em sua cidade natal. Em Paris, visitou o Musée de l’Homme e confrontou o apagamento de sua cultura. De volta à Martinica, em 1967, realizou a mostra Soleil noir [Sol negro] (1970) e cofundou o coletivo Fwomajé (1984), voltado à valorização das estéticas afro-caribenhas e ameríndias. A amizade com Édouard Glissant permeou sua trajetória, com décadas de diálogo que o estimularam a acolher o caráter múltiplo, inconcluso, inassimilável e opaco da experiência da história. Seja em pinturas, seja em cerâmicas, Anicet trabalha com formas sintéticas, que reelaboram referências simbólicas multiculturais, alegorias do trauma colonial e imagens poéticas do arquipélago caribenho em uma espécie de vocabulário próprio, uma paisagem de signos sem palavras. A obra Carcan (s.d.), por exemplo, alude aos grilhões de ferro usados para o controle de pessoas escravizadas, transformando sua silhueta em uma nova grafia visual.
Victor Brauner
Piatra Neamț, Romênia, 1903 – Paris, França, 1966 Brauner integrou as vanguardas de Bucareste (Romênia) antes de se mudar para Paris, em 1930, onde contribuiu para o fortalecimento da pintura dentro do círculo surrealista. Sua trajetória artística foi atravessada por guerras, exílio e perseguições – era judeu e viveu na clandestinidade durante a ocupação nazista da França. Desde a juventude, cultivou um interesse por práticas esotéricas e cosmologias não ocidentais. A perda do olho esquerdo, em 1938 – sete anos após pintar um autorretrato com o olho enucleado –, tornou-se episódio emblemático, aprofundando seu interesse por imagens que priorizam a visão interior. Durante os anos de guerra, impedido de emigrar como outros surrealistas, Brauner refugiou-se no sul da França, onde desenvolveu técnicas experimentais com cera e materiais precários. Nessa fase, mergulhou em estudos sobre ocultismo, alquimia, cabala, tarô e sistemas simbólicos de culturas antigas do Egito e de civilizações mesoamericanas, africanas e oceânicas. Criou, assim, um vocabulário pictórico no qual se entrelaçam mitologia pessoal e cosmologias arcaicas. Sua pintura Oui Non [Sim Não] (1947), que Édouard Glissant mantinha sempre em sua mesa de trabalho, dispõe números, palavras, geometrias e signos em uma convergência de simbologias relativas à definição do destino.
Wifredo Lam
Sagua la Grande, Cuba, 1902 – Paris, França, 1982 Cubano de ascendência chinesa, espanhola e africana, Lam elaborou sua relação com o Caribe enquanto vivia em errância: passou primeiramente por Madri, onde chegou a lutar na Guerra Civil Espanhola, e depois por Paris, a partir de 1938, onde conheceu Picasso e, por ele, André Breton, que o conectou ao surrealismo. Em deslocamento, Lam, cuja produção foi descrita por Breton como “em constante mudança, movimento e conexão”, alimentou e foi alimentado por considerações profundas sobre a convergência de saberes que cada pessoa pode articular entre raízes, culturas e paisagens múltiplas. Com a Segunda Guerra Mundial, Lam iniciou uma dinâmica de deslocamento contínuo que passou por Marselha (França), Martinica, Havana (Cuba) e Nova York (EUA) – um nomadismo que se estendeu mesmo após o fim da guerra. Entre essas passagens, Lam desenvolveu uma obra pictórica baseada na profusão criativa do desenho, que não pode ser decodificada apenas por um sistema de símbolos. Sua abordagem complexa do legado pós-cubista e surrealista incorpora elementos da iconografia espiritual afro-caribenha, referências a mitologias múltiplas e invenções pessoais. Édouard Glissant, que se aproximou de Lam a partir da década de 1950, admirava o modo como a convergência de traços de memória na obra do artista exemplifica a dinâmica do imaginário dos povos do Tout-Monde [Todo-Mundo] – uma leitura convergente com o livro-montagem Le nouveau Nouveau Monde [O novo Novo Mundo] (1975), raro testemunho de como Lam percebia a organicidade de seus fluxos migratórios e a pluralidade de sua identidade.
Zé di Cabeça (José Eduardo Ferreira Santos)
Salvador, Brasil, 1974. Vive e trabalha em Salvador, Brasil Zé di Cabeça é pedagogo, mestre em Psicologia, doutor em Saúde Pública e pós-doutor em Cultura Contemporânea. Nascido e criado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, fundou, ao lado de sua esposa, Vilma Santos, o Acervo da Laje, espaço cultural independente que funciona como casa, museu e escola, dedicado à preservação e valorização das expressões artísticas e culturais das periferias soteropolitanas. Desde a pandemia de Covid-19, exercita a pintura como desdobramento de suas pesquisas. Em uma das frentes desse exercício, produz inúmeras pinturas de velas, isoladas ou reunidas em conjuntos, feitas sobre pedaços de madeira de descarte, muitas delas deixadas na praia pelo movimento das marés. A prática deriva de sua investigação contínua sobre os ex-votos e explora a pintura como escrita com a luz. Pela repetição, insistência e variação na abordagem de uma estrutura constante, as velas dispostas no Acervo da Laje reacendem-se a cada dia ao pôr do sol, compondo uma paisagem luminosa que se transforma em prática votiva e ato de restituição. Como afirma Adélia Prado, presente no ateliê do artista: “Uma luz banha o mundo”.
PROJETO GLISSANT

Para setembro de 2025, está programado o lançamento de um catálogo, em português e em inglês – cuja edição em inglês está sendo coeditada pelo CARA — Center for Art, Research and Alliances, que reúne textos das instituições parceiras, ensaio curatorial de Ana Roman e Paulo Miyada, verbetes sobre os artistas participantes, além da transcrição de trechos do Abécédaire. O volume inclui também o manuscrito Caderno de uma viagem pelo Nilo, de Glissant, assim como legendas técnicas e ficha detalhada da exposição. Em novembro de 2025, no Instituto Tomie Ohtake, a programação se completa com um seminário com a participação de alguns dos artistas da exposição e com importantes intelectuais que dialogam com a obra de Glissant.

O projeto contempla, ainda, uma residência artística na Martinica, realizada em agosto de 2025, com a participação de Rayana Rayo e Zé di Cabeça (José Eduardo Ferreira Santos). Os frutos dessa vivência, que conta com o apoio da Coleção Ivani e Jorge Yunes e do Instituto Guimarães Rosa, darão origem a intervenções em diálogo com a coleção de arte africana do MON – Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba. O evento também integra a Temporada França Brasil. No primeiro semestre de 2026, a exposição tem itinerância prevista para Nova York, no CARA — Center for Art, Research and Alliances.

José Gamarra, L’inaccessible…, 1986-87, óleo sobre tela, 73,5 x100cm, Coleção Édouard Glissant
Régua site (1)
Play