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Força aterradora, ou: dominar é ser dominado
Nádia Matioli Yazbek Bitar
14 de novembro de 2025Força aterradora, ou: dominar é ser dominado
Nádia Matioli Yazbek Bitar
Uma turbina hidráulica com mais de três metros de diâmetro e cerca de 25 toneladas desloca-se no movimento contrário ao de sua instalação original: ela sobe a Serra do Mar. Depositada nas margens artificializadas do póstumo meandrante rio Pinheiros, documenta e dá sentido a uma intrincada relação entre a cidade de São Paulo, suas águas e a eletricidade. Essa razão hídrica começa pelo mar. O primeiro governador da Província de São Paulo em 1766 assim a expressa: “Há entre esta cidade (São Paulo) e o Porto de Santos hum freqüentíssimo comércio, e tão grande, que por meyo deles se provê de fazendas e mercadorias as Capitanias de Goyaz e Cuiabá, e muita parte das Minas Gerais: sendo tanta a freqüência e tão necessário um caminho público que desse vazão aos transportes tem sido tão negligenciado e descuidado o povo nesta província que deixaria a ley da natureza exede a toda humana explicação”. Morgado de Mateus estava preocupado em melhorar o caminho de Cubatão, que ligava o mar às serras e ao planalto da antiga vila de Piratininga. Vê-se que o progresso técnico para vencer a serra tropical – motivado pelo espraiamento e o avanço da mineração do ouro e do diamante – anunciava-se de fato imperioso, ainda que em uma vila pouco expressiva.
No início do século seguinte, o nobre francês Auguste de Saint-Hilaire esteve na Serra do Mar e assim registrou: “O caminho que leva ao seu cume é solidamente pavimentado, mas estreito, e embora seja todo traçado em curvas de cento e oitenta graus é de tal forma íngreme que só pode ser percorrido por pessoas a pé, cavalos e burros. Ele foi aberto numa espécie de saliência formada pela serra, e de ambos os lados um riacho se precipita numa ravina profunda. Em alguns pontos, ao olharmos para cima, os rochedos que projetam para frente, e sobre os quais os caminhos fazem mil voltas, dão-nos a impressão de uma fortaleza ameaçadora. Olhando para baixo nossa vista se perde em um aterrador abismo”. Aqui, a descrição de uma escarpa bélica e ameaçadora contrasta com a precária apropriação técnica. O sentido é, contudo, sempre o da superação dos limites impostos pela natureza.
Em 1867, a inauguração da São Paulo Railway, ou Estrada de Ferro Santos-Jundiaí – que seguia pelo vale do rio Moji e transpunha quase 800 metros de serra –, marcou o rompimento do histórico isolamento da região e abriu caminho para o desenfreado progresso material promovido pela economia cafeeira paulista. Mas um dos mitos da modernidade é o de que ela constitui uma ruptura radical com o passado. O polo dinâmico ou florescente parque industrial, a ser delimitado pelos contornos primeiro do rio Tietê e depois do Pinheiros, não rompeu completamente com os traços coloniais mesmo com a chegada da República, uma vez que a economia nacional girava em torno do mercado externo.
Extensas áreas de florestas convertidas em terras agrícolas no interior do Brasil – abrangendo a região Sul e os estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro – passam a orbitar a vila de São Paulo. Ao ritmo da engenharia de estradas de ferro, da melhoria dos portos e da criação de meios de comunicação, os avanços da indústria acompanharam tanto o crescimento demográfico quanto o da cidade em si. Profissões como a de barqueiros, cobradores de pedágio em pontes, tiradores de pedras, cascalho e areia ou pescadores caminhavam para o desaparecimento. Há uma dimensão social que compreende o termo industrialização, e que implica, por exemplo, na expansão do consumo impulsionada pela introdução de novos hábitos, ou pela adequação dos lugares a novas dinâmicas ditadas pela aceleração das forças produtivas.
Esses novos contornos da industrialização e da urbanização desencadearam intensos conflitos sociais, mas as oligarquias não se voltavam para a resolução dos problemas da população. Toda a sociedade brasileira, inclusive a paulista, parecia obedecer a um ensejo: a dependência em relação aos centros do capitalismo internacional. Aqui, os livros de história do Brasil mencionam termos como “manipulação da taxa cambial”, “dívida externa” e “inflação”; ao passo que, no plano da vida real, serviços essenciais como energia elétrica, água e transportes eram controlados por empresas estrangeiras, como a São Paulo Tramway, Light & Power Company Ltd., formada no Canadá com capital de origem inglesa e americana. Do mesmo modo que uma turbina é moldada para otimizar sua potência, a sociedade parece igualmente submetida a processos de ajuste.
Investimentos, entretanto, só se justificavam pelas perspectivas de um mercado consumidor cativo. Quando começa a ganhar forma um território mecanizado, ou a substituição do meio natural pelo meio técnico, a produção de energia elétrica torna-se literalmente aterradora – das várzeas – ao centro antigo de São Paulo. Dessa forma, a especulação dos preços da terra atuou e se inscreveu no tecido social, entrelaçada à própria formação da futura metrópole. Richard Morse observou áreas à espera de valorização da seguinte forma: “Antes de 1913 enormes áreas de terrenos eram compradas a baixo preço para fins particulares, ou eram simplesmente tomadas pelo sistema de grilos. Eram arruadas segundo o estilo ‘xadrex’ […] e vendidas em lotes. O ideal era dividir uma dada área no maior número de lotes possível. Todos de idêntico tamanho. Frequentemente um especulador deixava uma área vaga ou uma casa semiconstruída […], enquanto ele esperava pela sua valorização […]. Ao serem vendidos, muitos terrenos estavam ainda virtualmente sem melhoramentos e sem ligações adequadas com o resto da cidade”.
Uma associação íntima entre Estado e capital privado iria produzir o mercado consumidor e a cidade, não havendo mais espaço para o lúdico. No início do século passado, quando a eletricidade ainda despertava curiosidade e assombro, a aliança entre esses dois elementos – água e luz – se daria sobre o uso da força hidráulica. Os politécnicos paulistas não poderiam melhor expressar, em 1900: “A utilização da força hidráulica das nossas numerosas cachoeiras para a produção de energia elétrica que em muitas e várias aplicações industriais pode substituir, com grande vantagem econômica, a energia calorífica fornecida pelo carvão que importamos, é questão de real interesse nacional”.
Também de prioridade nacional foi o ano de 1922, marco simbólico na elaboração das memórias do Brasil por celebrar o centenário da Independência. Nesse ano, surgiu no Theatro Municipal de São Paulo a “estética da ruptura”, proclamada na Semana de Arte Moderna. Oswald de Andrade, debruçado sobre a antropofagia enquanto um destino-manifesto, descrevia o progresso eufórico, a maravilha mecânica: “Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna da cidade provinciana, iam desaparecer para sempre […]. Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas, os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam magicamente, sem impulso exterior? […] A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico!”.
A companhia Light construiu trilhos de bonde elétrico em todas as direções, inclusive para além das áreas de várzea, superando o rio Tietê até a Casa Verde, ou na Zona Sul indo até a antiga vila de Santo Amaro, incorporada à capital paulista em 1935. As linhas chegaram até Santo Amaro para dar apoio às obras hidráulicas da represa do rio Guarapiranga, realizadas em proveito da própria empresa. A famosa enchente de 1929 teria sido provocada pela Light, já que era dela o controle das águas represadas nesse rio. Para a companhia, era fundamental conquistar uma superfície significativa de várzea – a maior porção possível –, sobre a qual pudesse reivindicar os direitos aos terrenos, assegurados pela concessão que havia celebrado com o Governo do Estado de São Paulo em 1928.
Folha da Manhã, 15 de fevereiro de 1929: “A vizinha cidade de Santo Amaro viveu ontem uma grande, incomparável emoção, diante do espetáculo horrível da invasão das águas das duas represas da ‘Light’. Cedo, ainda as primeiras horas da madrugada, os moradores do Bairro do Socorro, alarmados, viam que as águas penetravam seus quintaes. Aos poucos, entravam pelas casas tomando vulto assustador, quando amanheceu já era intransitável o caminho de rodagem”. O rio Pinheiros – o rio de médio porte mais transformado na cidade de São Paulo, e talvez de todo o mundo tropical – viria a dar lugar a grandes e lucrativos negócios. A planície alagadiça, caracterizada por inundações recorrentes e solos saturados, restringia a expansão urbana da cidade (ou dos negócios da Light) e, por isso, tal paisagem, que mantinha lugares de pastoreio e práticas esportivas, seria condenada.
Até se consolidar como São Paulo Tramway, Light & Power Company Ltd., a Light se inseriu não apenas em São Paulo, onde se estabeleceu em 1899, mas também no Rio de Janeiro, em 1905, ao assumir a exploração dos serviços públicos de energia elétrica. Em apenas dois anos, ergueu uma das primeiras hidrelétricas do Brasil: a Usina Hidrelétrica de Parnaíba, hoje chamada Edgard de Souza, localizada no rio Tietê. À época, era a maior do país em relação à altura de sua barragem. Em 1926, entrava em operação o primeiro grupo gerador da Usina Henry Borden I, marco que em breve a tornará centenária. A usina pôde finalmente pôr fim à crise no abastecimento de energia elétrica na São Paulo daquele período, e foi a maior hidrelétrica em potencial de geração da América do Sul até meados dos anos 1970. De fato, um sofisticado sistema de barragens e reservatórios amparam a vantagem intrínseca da turbina de tipo Pelton, escolhida e instalada também por esta razão: o desgaste reduzido aumenta sua vida útil e diminui custos.
Para habitar a cidade cosmopolita, futura metrópole e novo quilombo de Zumbi, as relações de compadrio e vizinhança, os ribeirinhos, os campos de futebol de várzea e os clubes de regatas tiveram que minguar. Desenhava-se a segregação. Promovidas pelo poder público, mas em benefício da Light, obras de engenharia como a retificação e canalização do rio Pinheiros abriram áreas para desenhos e traçados por onde o urbano poderia existir. A cidade agora seria ocupada por um de seus motores mais característicos e definidores: a valorização dos terrenos. Associadas, a especulação e a apropriação de áreas públicas pelo capital privado – primeiro produtivo, depois administrativo e financeiro – enfim criavam os novos contornos para a vida na cidade.
A construção da Usina Hidrelétrica Henry Borden (Usina de Cubatão até 1964) pode ser lida como um capítulo subterrâneo da modernização e da cronologia da energia elétrica do Brasil. Escavada na encosta íngreme da serra, abriu-se um salão ou uma caverna com mais de 120 metros de profundidade, 21 de largura e 39 de altura, destinada a abrigar as unidades geradoras. As obras começaram ainda nos anos 1920 e se arrastaram até o início dos anos 1960, quando a última unidade geradora entrou em operação, em 1962. Vale lembrar que as turbinas escolhidas são justamente as mais adequadas para cenários de grandes desníveis e vazões relativamente modestas. A engenharia disciplinava aquele território.
Asa White Kenney Billings, que concebeu o Projeto da Serra, introduziu também outros modos de habitar: não só o regime do moderno trabalhador assalariado, mas o próprio cotidiano, com a construção de uma company town – a vila Operária, conhecida como vila da Light –, que irá remeter águas e costumes da vida familiar. Já nos morros de Piratininga, as obras em dois pontos específicos revertiam o curso natural do rio Pinheiros, que antes corria em direção ao Tietê até Barra Bonita. Para isso, o rio passou a contar com bombas e estações elevatórias, incluindo a Usina de Traição, ainda visível hoje na paisagem da Marginal Pinheiros. Por ter sido a embocadura do córrego Traição e também por trair o curso original das águas do Pinheiros, o nome vingou. Mas a estrutura foi recentemente rebatizada para Usina São Paulo SPE S/A, dessa vez traindo – ou melhor, apagando – tanto a história natural dos rios da cidade como aquela do monopólio ou truste de uma empresa.
Da Represa Billings, essas águas convergiam a outra barragem que represava também águas do rio Grande e do rio das Pedras. Por fim, a infraestrutura contemplava uma casa para visitantes e um mirante com vista para o mar, que serviu de mise-en-scène do renomado escritório de Ramos de Azevedo (e depois de Severo e Villares). A casa é tombada pelo seu conteúdo histórico e arquitetônico, ainda que seu estilo tenha sido classificado como de um hibridismo entre o bangalô indiano e o colonialismo inglês na Índia.
A Usina Hidrelétrica Henry Borden tem endereço na avenida Bernardo Geisel Filho, 2606. É uma homenagem ao irmão do presidente ditador que encerraria os chamados anos de chumbo, e que ocupou por muitos anos a diretoria de uma unidade emblemática para a Petrobrás: a Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão. A transformação da cidade em polo petroquímico – paradigmático pelos episódios de incêndio, poluição e chuva ácida – deve muito à energia elétrica produzida em Henry Borden. Aqui, a personificação em um indivíduo torna visível como a articulação de vários processos (políticos, econômicos, culturais) ensaia uma explicação da totalidade. Contudo, quanto a esse senhor, Henry Borden, não há relevo. A insistência em personalizar a história, transformando-a em biografia heroica, repete o gesto alienante que nada acrescenta à compreensão das contradições da modernização brasileira.
Cada gerador da usina é acionado por duas turbinas do tipo Pelton, feitas em aço inoxidável. As turbinas são saciadas pelas águas que chegam à Casa de Válvulas, atravessam válvulas borboleta e, por condutos forçados, descem a encosta até alcançar suas respectivas turbinas e geradores em Cubatão, percorrendo atléticos 1,5 mil metros. Assim como os deslizamentos de terra deixam cicatrizes nos morros da encosta, os tubos da usina – cicatrizes tecnológicas – também podem ser avistados de longe. Hoje, todo esse sistema de interligação de bacias hidrográficas, lagos artificias para a geração de energia elétrica e uma hidrelétrica cravada na serra é considerado um backup do Sistema Interligado Nacional (SIN). O uso das águas para fins de geração de eletricidade passou a ser regulado, a fim de evitar que a poluição do Tietê e do Pinheiros contaminasse o sistema Billings-Guarapiranga, já que este passou a fornecer água para a região metropolitana. As águas poluídas acabavam contaminando os sistemas de manguezais da Baixada Santista. A desativação, ainda que parcial, é parte de uma história de luta da sociedade civil.
Na Usina Henry Borden, repousam unidades geradoras equipadas com turbinas suíças da Charmilles, alemãs da Voith e americanas da Allis-Chalmers, além de geradores da Westinghouse e turbinas canadenses da Dominion. Turbinas Pelton remontam a São Paulo dos Campos de Piratininga e criam um jogo de palavras a partir de sua descrição técnica: projetadas para suportar longos períodos de operação sem perda significativa de eficiência. Conforme reportagem de julho de 2025, as unidades permanecem conectadas ao sistema interligado, prontas para operação, mas nem sempre gerando energia. A usina é acionada de forma sazonal, por exemplo, em caso de excesso de demanda de energia elétrica, como durante os horários de pico de consumo. Mas há uma outra leitura desse mesmo quadro, pois, com as mudanças recentes no setor elétrico, a situação se complexificou: legislações ambientais parecem estar sendo relativizadas e, em casos de necessidade (diga-se: lógica do lucro com a venda) de eletricidade, essas unidades podem ser acionadas. Unidades geradoras, agora convertidas em ativos do mercado financeiro, têm desencadeado uma série de problemas para o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), ente responsável por atender as demandas, enfim, das pessoas.
Sobre o complexo energético, a matéria cita um outro tipo de bomba: “se funde à paisagem da cadeia de montanhas da Serra do Mar” […] e “ajudou a alavancar o desenvolvimento industrial do estado de São Paulo” […]. “Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, movimento armado ocorrido no Estado de São Paulo para derrubar o Governo Federal Provisório de Getúlio Vargas e promover a promulgação de uma nova constituição para o Brasil, o complexo Henry Borden foi bombardeado”. Após o fim da guerra civil, consolidou-se uma narrativa em torno do movimento constitucionalista que o apresentava como uma defesa dos ideais liberais frente ao autoritarismo. Por meio das comemorações promovidas pelas elites paulistas e pelas camadas médias que participaram do conflito, essa versão dos acontecimentos também foi moldada ao longo dos anos. A infraestrutura vital é sempre um alvo, mas a história também compreende contranarrativas.
Em termos de domínio, é justamente nessas regiões de várzeas e baixios – como, por exemplo, a Berrini e a Faria Lima – que o grande capital se estabelece na São Paulo contemporânea. Antigos leitos do rio e zonas de espraiamento dão lugar à celebração persistente de poder e riqueza, ou de exclusividade e sofisticação dos novos lançamentos imobiliários. Nesses espaços, o urbano para além do aparato técnico-operacional apresenta um caráter possivelmente enviesado, útil apenas para consolidar uma cidade cativa às aspirações das classes dominantes. Ao plano da vida cotidiana, o avanço das técnicas e da produção da cidade pelo capital comprimem o tempo, quantificando-o. O espaço se torna distância. Agora abstrato, desafia a criação de identidade com a cidade e com sua memória coletiva. O espaço permanece, testemunha. Descansa sob um curso de rio retificado ali onde deita uma turbina de hidrelétrica de tipo Pelton. Note, essa turbina está tombada.
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Visite a exposição Águas subterrâneas: narrativas de confluências, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake.
Período expositivo: 3.SET 2025—25.JAN 2026